O Catar se prepara para receber 1,6 milhão de turistas durante a Copa do Mundo, em novembro deste ano
A apenas 23 semanas ou 160 dias do pontapé inicial da Copa do Mundo,
marcado para 21 de novembro, ainda restam várias obras não concluídas
para que o Catar, enfim, esteja pronto para organizar o maior evento
esportivo de sua história. Ainda proliferam operários e máquinas por
todos os cantos da cidade.
A reurbanização das proximidades de um dos principais mercados da
cidade, por exemplo, anda a passos lentos. O caminho do hotel nesta
região até uma estação de metrô, que deveria levar apenas cinco minutos,
ainda é um percurso repleto de buracos, entulhos e barreiras de
proteção, em que equipes trabalham em ritmo acelerado neste ponto, mesmo
até tarde da madrugada. E esta situação se repete em vários outros
pontos de Doha e seus arredores.
Apesar da
visível correria para deixar tudo pronto até novembro, quando começará a
Copa do Mundo, e as delegações dos países participantes e 1,6 milhão de
turistas começarão a desembarcar em Doha, as autoridades catarianas
evitam o alarmismo. "Estamos trabalhando duro e preparados para
organizar uma Copa do Mundo inesquecível e receber, de braços abertos,
milhares de visitantes", diz Hassan Al-Thawadi, secretário-geral do
Comitê Supremo para Entrega e Legado.
Não se
trata de um relato exclusivamente do Catar no que diz respeito à
organização de uma Copa. Na Rússia, em 2018, e no Brasil, em 2014, os
empreiteiros do Mundial também atrasaram parte das obras combinadas. No
Brasil, um trem que ligaria o centro da cidade de São Paulo ao Aeroporto
Internacional de Guarulhos só ficou pronto anos depois de a Alemanha
ter festejado o título. Dos doze estádios brasileiros que receberam
jogos, apenas dois tiveram os prazos cumpridos: o Castelão, em
Fortaleza, e o Mineirão, em Belo Horizonte. O estádio do Corinthians, em
Itaquera, por exemplo, foi concluído em maio, um mês antes de a bola
rolar.
Sustos e contratempos
No
mundo real, o fato é que os preparativos para organizar a primeira Copa
em um país árabe formam um enredo recheado com surpresas e sustos. Em
dezembro de 2010, quando, surpreendentemente, o Catar venceu a
concorrência dos Estados Unidos, Austrália, Japão e Coreia do Sul para
organizar a disputa da Fifa, o plano era de que o Catar colocaria doze
estádios à disposição do evento - três reformados, nove novos em folha -
, além de um pacote de obras de infraestrutura orçado em US$ 200
bilhões. Mas estes projetos ambiciosos começaram a balançar em maio de
2011, quando vazou um e-mail do então secretário-geral da Fifa, o suíço
Jérôme Valcke, ao presidente da Concacaf, a federação continental que os
países da América do Norte e Central e do Caribe. O texto dizia que "o
Catar havia comprado a Copa do Mundo de 2022."
Foi
o estopim para uma investigação que afastou os dois dirigentes,
arruinou a carreira do então presidente da Fifa, o suíço Joseph Blatter,
e colocou na prisão catorze dirigentes de várias confederações, entre
eles José Maria Marin, ex-presidente da CBF. Tudo isso, claro, causou
contratempos na organização.
A tragédia nos canteiros
Mais
notícias ruins viriam, meses depois, em 2013, quando uma outra
investigação feita pela Confederação Sindical Internacional (ITUC, na
sigla em inglês) denunciou as condições de trabalho precárias de
operários estrangeiros. Começava pelas jornadas extenuantes, com duração
entre 12 e 14 horas, mesmo sob temperaturas acima dos 45°C. Seguia com
as condições insalubres dos alojamentos, com até doze operários
compartilhando cômodos imundos e mal ventilados. Mencionava desrespeito a
direitos humanos básicos, como a retenção de passaportes e documentos,
para impedir mudanças de emprego. Denunciava o pagamento da jornada de
trabalho por valores irrisórios (cerca a R$ 6 a hora), atrasos e até
calote nos salários, por parte de empreiteiros. Apontava o dedo para a
falta de segurança.
O resultado disso tudo foi
uma carnificina nos canteiros de obras da Copa de 2022. Segundo
reportagem publicada pelo The Guardian, em fevereiro do ano passado, em
uma década, teriam morrido 6.751 operários envolvidos nas obras. Segundo
a Organização Internacional do Trabalho, uma agência da ONU que tem um
escritório em Doha, só no ano passado, houve 38 mil acidentes de
trabalho, 500 deles classificados como graves.
"Muitos
destes homens eram, aparentemente, saudáveis, passaram nos testes para
trabalhar no Catar e, no entanto, morreram jovens e seu atestado de
óbito apenas indicam causas naturais, parada cardíaca ou insuficiência
respiratória", disse May Romanos, pesquisadora da ONG Anistia
Internacional, para região do Golfo Pérsico. Apesar disso, ela reconhece
que hoje em dia a situação dos direitos trabalhistas é muito melhor do
que era há doze anos.
Um dos principais avanços
foi o fim da kafala ("patrocínio ou garantia" em árabe), um sistema de
relações trabalhistas muito comum nos países da região do Golfo Pérsico,
segundo o qual um estrangeiro não pode mudar de trabalho ou ir embora
do país sem a permissão de seus empregadores. "A abolição da kafala, a
instituição de um salário mínimo (equivalente a US$ 275) e a introdução
de normas de proteção de saúde mostram que o Catar está indo na direção
certa: é preciso reconhecer que há um avanço de leis trabalhistas neste
país", disse Gianni Infantino, presidente da Fifa, durante seu discurso
no Congresso da entidade, em Doha, no início de maio.
A Copa encolheu
Outro
contratempo enfrentado pelas autoridades do Catar foi enxugar os custos
do evento, na marra. Já às voltas para bancar cerca de US$ 500 milhões
por semana em projetos para organizar o Mundial, em 2014, o comitê
organizador decidiu reduzir o tamanho do evento e acomodá-lo em apenas
oito arenas. Obras prioritárias, como o novo sistema de metrô, com três
linhas, que interligará dez dos estádios e o aeroporto, foram concluídos
e funcionam muito bem. Mas ficaram pelo caminho o arrojado trem de alta
velocidade (350 km/h) que ligaria o país ao Bahrein e as ligações
ferroviárias a 200 km/h com a Arábia Saudita.
É
que em 2017, o governo do Catar sofreu boicote político e econômico por
parte da Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes e Egito, que o
acusaram de apoiar o extremismo e fomentar laços com o Irã. Além de
cancelamento de projetos, o conflito diplomático obrigou as autoridades
catarianas a buscarem fornecedores alternativos fora dos países
envolvidos na disputa em andamento.
Quando esta
crise com os vizinhos ainda não havia sido solucionada, dias depois de
Doha sediar o Campeonato Mundial de Clubes da Fifa, em 2019, em que o
Liverpool, da Inglaterra, venceu o Flamengo na final, veio a pandemia da
covid-19, que causou um novo solavanco nos cronogramas das obras. Até
hoje o Catar é um dos países com medidas mais rigorosas para prevenir o
contágio. Nenhum estrangeiro entra no país sem fazer quarentena se não
estiver vacinado e não exibir o resultado negativo de um teste do tipo
PCR feito com até 48 horas antes de sua chegada. Ao chegar no país, é
obrigatório instalar um aplicativo no telefone celular, o Ehteraz. Sem
mostrá-lo não se entra em lojas, metrô ou ônibus. Com receio de uma nova
explosão nos contágios bem no meio da Copa do Mundo e escaldadas por
tantos sustos, as autoridades de saúde do Catar preferem jogar de olho
na segurança.
Estadão Conteúdo
Nenhum comentário:
Postar um comentário