
Ivanice Conceição tem sete filhos e não consegue oferecer alimentação
adequada para eles. Segundo ela, não sabe se almoça, não sabe se janta
Em um ano, entre abril de 2021 e abril de 2022, 115,9 mil pessoas,
distribuídas em 80 mil famílias, ingressaram na faixa da extrema pobreza
no Rio Grande do Norte, segundo aponta um levantamento do Cadastro
Único, compilado pela Secretaria de Estado do Trabalho, da Habitação e
da Assistência Social (Sethas). O número representa um crescimento de
21,6% da miséria nas famílias do RN. Para ter uma ideia da dimensão do
indicador, se o grupo de novos pobres extremos formasse um município,
ele seria o 4º mais populoso do Estado, atrás apenas de Natal, Mossoró e
Parnamirim.
O Rio Grande do Norte tem 1,15 milhão de pessoas vivendo na
extrema pobreza, com uma renda per capita de até R$ 105 por mês. Outros
154 mil potiguares estão em situação de pobreza, quando a renda mensal
per capita fica entre R$ 105,01 e R$ 210. Ao todo, somando os grupos das
duas faixas de renda – que são definidas pelo Ministério da Cidadania –
o Estado tem 1,30 milhão de pessoas em alguma situação crítica de
vulnerabilidade social, o que representa cerca de 1/3 da população. Os
dados populacionais são do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
Um dos retratos desse
cenário é o de Wellington Cabral, de 50 anos, que vive em situação de
rua e está no patamar máximo de pobreza financeira. Ele conta com
doações e a atividade de catador de recicláveis para tentar colocar
alguma comida no prato. “Aqui a gente não sabe quando vai comer e se vai
comer. A situação é precária. Ninguém liga pra gente não, acham que são
tudo vagabundos. Veja aqui, a gente morando nesses barracos e essa ruma
de prédio, de carro passando. É como se a gente não existisse”, diz
Cabral, apontando para o fluxo de veículos próximo ao Viaduto do Baldo,
na zona Leste de Natal, local onde se abriga com a esposa.
O
avanço da pobreza no Estado revela que uma parcela maior da população
está comendo menos, analisam especialistas ouvidos pela TRIBUNA DO
NORTE. Para efeito de comparação, a renda mensal de R$ 105 – realidade
de 1,15 milhão de potiguares – seria suficiente para comprar apenas 25%
de uma cesta básica em Natal, conforme cálculo baseado em pesquisas de
preços dos alimentos do Procon. Em outros números, 32,2% da população do
Rio Grande do Norte passa o mês com 8,6% de um salário mínimo.
A
também catadora de recicláveis Ivanice Conceição, de 31 anos, mora no
bairro Planalto e é chefe de uma família de sete filhos, com idades
entre 3 e 14 anos. Ela diz que atualmente não consegue oferecer comida
em quantidade satisfatória para todos os filhos e teme não ter o que
comer no dia seguinte. “A gente vive nessa situação e todo dia é uma
dificuldade diferente. Não sabe se almoça, não sabe se janta. Tem dia
que a gente apura R$ 10, R$ 20, não tem um valor certo, até porque tem
muita gente catando também. Não dá nem pra dizer quanto que a gente
ganha por mês porque o que apura no dia já gasta no mesmo dia com
comida”, relata.
Ivanice diz que a situação
ficou ainda mais difícil no mês passado, com o bloqueio do Auxílio
Brasil. “Não sei o que foi que aconteceu porque não recebi, vim aqui [no
Cadastro Único] para falar com a assistente social. Pago R$ 250 de
aluguel, energia e água com esse auxílio e as contas estão todas
atrasadas. Tô morrendo de medo. O aluguel é o que mais preocupa. A vida
está muito difícil e cada dia tem mais gente na reciclagem. A gente
apura menos porque tem mais gente trabalhando também na reciclagem”,
diz.
A professora do Departamento de Políticas
Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DPP/UFRN),
Sandra Gomes, diz que a dificuldade de acesso à renda, nos mercados
formal e informal, tiveram impacto determinante na crise, mas acrescenta
que o problema pode ser explicado a partir de uma combinação de
fatores. Ela também cita a pandemia como um dos aspectos que compõe o
diagnóstico da miséria, mas faz ressalvas.
“Nós
temos um problema da inflação dos alimentos que está bem demonstrado,
que tem corroído o poder de compra da população sistematicamente. A
gente está vendo que as políticas públicas que deveriam estar protegendo
não estão funcionando, não estão chegando em todas as famílias, isso
independe de pandemia. Eu particularmente acho que a pandemia tem um
peso explicativo, mas do ponto de vista da gestão da política pública de
proteção social no Brasil, eu acho que a pandemia não fez nenhuma
diferença porque as escolhas feitas são muito excludentes”, explica.
“O
Auxílio Brasil está sendo feito em novas bases, excluindo a população
que está no cadastro, cumpre os critérios, mas não consegue receber e
isso é uma situação extremamente urgente. Tem aparecido cada vez mais
que a fila para o Auxílio está crescendo e essas famílias não estão
sendo atendidas”, complementa Sandra Gomes.
Desemprego tem impacto na pobreza
O
aumento da vulnerabilidade social é reflexo do ritmo lento de retomada
econômica após o período mais crítico da pandemia, afirma Cassiano
Trovão, professor do Departamento de Economia da UFRN. A pesquisa mais
recente do IBGE, referente ao primeiro trimestre deste ano, mostra que
222 mil potiguares estão desempregados, o que corresponde a uma taxa de
desocupação de 14,1%, acima da média nacional para o período (11,1%).
Iris Oliveira considera que pandemia gerou desemprego
O número aponta para uma alta na
desocupação entre os potiguares. Até então, o Estado vinha de três
trimestres seguidos de queda no desemprego. No segundo trimestre de 2021
era 16,3%, passou para 14,7% e fechou o ano com 12,7%. Trovão afirma
que a recuperação do mercado de trabalho ainda não se confirmou, do
ponto de vista da geração de novos postos de emprego.
“O
tipo de emprego que se tem gerado é de baixa qualificação, baixa
remuneração, muito mais instável, próximo às condições de informalidade,
então nós temos uma economia que não avança e uma redução dos
benefícios pagos, associados à proteção social. Tínhamos um grande
programa emergencial em 2020, que foi descontinuado no início de 2021, e
depois voltou muito menor. Como o mercado de trabalho não se recupera e
os auxílios emergenciais foram retirados da mão de muitas famílias,
isso gera, obviamente, uma tendência de aumento da pobreza e da
desigualdade”, destaca.
Para a titular da
Sethas, Iris Oliveira, o aumento da extrema pobreza no Rio Grande do
Norte está diretamente relacionado às questões do mercado de trabalho. A
crise evidenciada pela pandemia de covid-19 também teve papel decisivo
para que mais potiguares passassem a conviver com algum tipo de
insegurança alimentar.
“Quando se tem o
agravamento da pandemia, é muito grande o número de pessoas, que
perderam trabalho. As condições de vida pioraram com a própria doença, a
questão econômica. Tivemos famílias, que nesse contexto da crise,
ingressaram na pobreza ou estavam na pobreza e entraram na extrema
pobreza. A queda do poder de compra do salário mínimo, a forma como o
próprio governo federal vem tratando isso também. É um conjunto de
fatores que vai agravando as condições de vida das pessoas”, comenta
Iris Oliveira.
Além da alta da extrema pobreza,
a Secretaria de Estado do Trabalho, da Habitação e da Assistência
Social também verificou um aumento de 16,3% no número de famílias
inscritas no Cadastro Único, passando de 661.907 em abril do ano passado
para 769.857 em abril último. O dado é mais um indicativo de perda
econômica para o potiguar, diz Iris Oliveira, uma vez que a inscrição no
CadÚnico é a porta de entrada para acessar programa de transferência de
renda do Governo Federal, como Auxílio Brasil, Benefício de Prestação
Continuada e Tarifa Social.
“Considerando a
crise social, política e econômica que se apresenta aprofundaram-se em
meio a crise sanitária de saúde, com as inflexões da pandemia e os
efeitos deletérios no mundo do trabalho, no campo dos direitos sociais,
da proteção social, e isso tem deixado milhões de brasileiros convivendo
com a incerteza e as inseguranças sociais, que refletem no pleno
exercício da cidadania. Identifica-se o aumento da desigualdade social
como o desemprego, pobreza e miserabilidade que geram vulnerabilidades e
riscos sociais”, pontua.
Renda de pobres cai 30% e cresce 3% entre ricos
A
desigualdade de renda no Rio Grande do Norte em 2021 foi a maior desde
2012. O índice que mede a desigualdade de rendimento domiciliar por
pessoa (Gini) foi de 0,587 no Estado, o segundo maior do Brasil e o
maior da região Nordeste. Além disso, entre os potiguares no grupo dos
5% de menor renda houve uma queda de 30% no rendimento médio mensal real
por pessoa em 2021. Essa parcela da população tinha uma renda média
mensal de R$ 79 em 2020.
Em 2021, o valor caiu
para R$ 55. No outro extremo das classes de renda, a população que faz
parte do 1% de maior renda do Estado teve um crescimento de 3% no
rendimento médio mensal real por pessoa em 2021. Em 2020, a média de
renda dessa população era de R$ 11.576 e subiu para R$ 11.934. Esse
grupo ganhou, no ano de 2021, 210,4 vezes mais que o grupo mais pobre da
população.
Esses números foram divulgados em
relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua
divulgada em junho deste ano, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), em módulo denominado “Rendimentos de todas as
fontes” 2021. Em relação ao índice Gini houve um aumento de 0,075, o
maior do país, ante 2020, quando atingiu 0,512. Além disso, o Gini
potiguar foi superior ao índice nacional (0,544).
O
Rio Grande do Norte também tem a terceira maior desigualdade de renda
do Brasil entre as pessoas com idade de trabalhar em 2021. O índice de
Gini do rendimento médio mensal real, das pessoas de 14 anos ou mais
(com origem em todos os trabalhos), do RN também alcançou a maior marca
da série histórica iniciada em 2012: 0,542. Só Distrito Federal (0,551) e
Paraíba (0,558) têm desigualdade mais acentuada.
Números
Potiguares na extrema pobreza (renda menor que R$ 105/mês):
04/2021 – 369.248 famílias ou 1.036.338 pessoas;
04/2022 – 449.291 famílias ou 1.152.270 pessoas;
Diferença de 80.043 famílias ou 115.932 pessoas (+21,6%).
Inscritos no Cadastro Único
04/2021 – 661.901 famílias ou 1.746.944 pessoas;
04/2022 – 769.857 famílias ou 1.897.781 pessoas;
Diferença de 107.956 famílias ou 150.837 pessoas (+21,6%).
Fonte: Cadastro Único/ Secretaria de Estado do Trabalho, da Habitação e da Assistência Social (Sethas).
Tribuna do Norte
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